Crónicas de Minha Infância: confissão de meus crimes!
Soltar Pipas
Carlinhos era um menino que morava numa casa com um terreno enorme nos fundos do nosso prédio. Ficava ao lado de uma fábrica abandonada. Lá se juntava a garotada das ruas próximas para montar uma “gang das pipas”. A lembrança que tenho do Carlinhos,( que tinha a idade próxima da idade de meu irmão) era de uma garoto “da paz”. Engraçado lembrar disto, mas não tenho qualquer lembrança daquele menino triste ou zangado. Aliás, lembro-me dele como um pacificador das brigas. Era um “às no cruze”. Devíamos ser uns 13 meninos que se juntavam para soltar pipa nas tardes de férias no verão escaldante. À sombra de uma grande amendoeira era montada uma fabricação em série e por isso chegávamos a seguir ao almoço. Compravam as pipas no Manel Fuínha, que vendia as melhores pipas da cidade mas sem rabiola. Tínhamos que comprar papel seda, cortar rabiola com tesoura, por espaçamento certo para que a pipa dibicasse com mais agilidade( menor espassamento junto à pipa e ao meio aumentava o dobro do espaçamento e no terço final , cerca de 4 vezes o espaçamento. Por vezes, fazíamos nós mesmo as pipas desde as varetas de bambú, a armação e o colar do papel de seda com arroz cozido.
Passávamos a tarde partindo vidro para o serol ( lâmpadas fluorescentes queimadas faziam o serol mais fino e cortante). Punha-os numa lata velha e socávamos com soquete de ferro ou marreta velha até virar pó. Derretíamos a cola para madeira ( que vinha em tabletes) numa lata velha no fogo à lenha, juntávamos o vidro e mexia-se bem.
Estendíamos as linhas para passar o serol e secar ao sol. Carlinhos supervisionava cada etapa. O serol, ele passava e dava um esticão. Às vezes, passava duas mãos. Depois, com a pipa no ar, continuava a passar serol ao dar linha. A maioria usava linha 10 mas alguns usavam codorné 0 ou 00 ou 000 ( rococó) !
Preparadas as pipas, feitos os cabrestos, os mais velhos ficavam encarregados de levantar, cruzar, aparar e recolher o espólio de guerra.
Eu, que fazia parte da raia miúda, só trabalhava, observava e torcia. Minha função além de levar a pipa e segurar para outro “por no ar”, também era ficar ao lado do “cruzador” para enrolar rapidamente a linha e não deixar embolar. A linha descarregada do carretel era enrolada em latas de óleo de soja (forradas com jornal) ou (as melhores), enroladas em latas de talco( de papelão duro). Por vezes também eram enrolados no carretel mas com uma vara de bambu no centro do carretel( para enrolar , fazia-se um oito).Às vezes, cortava-me na mão e nos dedos com o serol. Existiam várias manobras de cruzamento: por cima, por baixo revirando, chicote, tentear, dibicar, arrastão, etc. Às vezes, faziam-me uma pipa de folha de caderno para brincar à baixa altura. Para ficar mais firme, transpassava-as com 2 varinhas de piaçava de alguma vassoura. Também tinham várias técnicas de deixar o serol mais fino , mais grosso, 2 passadas de serol. Acho que nossa gang era imbatível tal a organização e empenho da gurizada. Terminávamos a tarde cheio de novas pipas de espólio. Meu irmão era um dos melhores no cortar e aparar.
Tinha uns gritos e canções que cantávamos quando alguém chamava para o cruze e fugiam “ Tá com medo xambarel, minha pipa é de papel !”
Muitas vezes ficávamos na “cegueira” da pipa até o pôr-do-sol. Depois brincávamos de bola de gude(bule ou triângulo), pião, cabra cega, queimada, pique-bandeira, carniça, pique-tá, pique-ajuda, pique-esconde, pique-alto, pique-baixo, barril-e-um, pega-pega , índio e mocinho, polícia e ladrão ou outra maluquice divertida. Engraçado, agora tento lembrar mas não jogávamos bola, acho. Faltavam balizas?
Certa vez, lembro-me de ir à feira na Rua Dom Walmor com minha mãe, e terminada a feira, já de retorno para casa, um rapaz vendia pipas com “rabiola pronta”! Não resisti a hipótese de ter uma pipa pronta . A pipa era até feia, preta e branca mas com àquela pipa, eu chegaria ao terreno do Carlinhos pela primeira vez sem ser o “pequeno garoto desprezível” da gangue. Teria algum destaque, mesmo que por uma tarde, uma hora, um instante. Almejamos sempre na vida um brilhantismo, um destaque, nossos 15 minutos de glória e eu sentira que era minha vez !
Claaaaro que implorei a minha mãe e ela até perguntou o preço ao menino e logo disse que não compraria, que era muito cara. Travei os 10 dedos no asfalto até marcá-los com minhas unhas por fora das sandálias e não arredava o pé. Minha mãe começou a me arrastar e eu já a chorar e gritar. Estávamos no cruzamento da rua Dom Walmor com a Rua Amaral Peixoto, onde começava a feira e um dos maiores cruzamentos da cidade. Tinha um guarda para controlar o trânsito de carros e pessoas devido o movimento da feira e desvios. Quando vi o guarda, minha decisão foi rápida: deitei-me no chão e comecei a espernear (quase convulsivando). Trânsito obstruído, veio o guarda junto à minha mãe tentando entender o drama e pediu para me retirar da estrada. E eu “estribuxando” para me comprar a pipa. Minha mãe, envergonhada, disse baixinho: “vou comprar a pipa mas vais apanhar muito!” Engoli em seco o choro, voltamos, compramos a pipa e chegando em casa, bateu-me com chinelo várias vezes. Chorando e com a pipa na mão, fui ao quarto mostrar ao meu irmão que tinha uma pipa pronta para soltar, com sorriso e lágrimas. Acho que a pipa avoou logo no primeiro vôo mas eu aprendera como chantagear minha mãe e conseguir o que queria.